• Prof. Me. Paulo Vitor Souza da Luz/Historiador, Gestor e Produtor Cultural

 A Festa de Nossa Senhora do Amparo não se explica, se vive! Por mais que eu tente escrever sobre o que ela representa, nunca consigo traduzir plenamente o sentimento de vivenciá-la. Trago comigo percepções profundas, moldadas tanto pela minha condição de valenciano quanto pela devoção à padroeira, mas há dimensões da festa que escapam às palavras. É preciso experimentá-la: festejar Nossa Senhora do Amparo, hoje aclamada também como “Rainha do Baixo Sul da Bahia”. Ainda assim, é imprescindível falar sobre a Festa do Amparo, pois falar da festa é, em essência, falar do povo valenciano.

Para começar, há uma percepção evidente: a Festa de Nossa Senhora do Amparo é, acima de tudo, a festa do povo. E quando falo em povo, refiro-me às classes populares, que ao longo dos séculos se apropriaram da devoção à santa, criando representações, símbolos e modos próprios de festejar. Elas se projetaram na festa, imprimindo nela suas expressões e identidades. Não é por acaso que ninguém duvida de seu caráter popular. Barracas, blocos, sambas, batucadas e tantas outras formas livres de reverência à padroeira, especialmente no dia 8 de novembro, acontecem de modo espontâneo, fora do controle institucional da Igreja. É o povo baiano em sua essência, festejando com corpo, fé e alegria. E isso é histórico!

Desde que a devoção a Nossa Senhora do Amparo foi estabelecida na região hoje compreendida como Valença, por volta de 1673, ela sempre manteve uma relação estreita com as classes populares. Isso se explica pela própria natureza das devoções marianas, que desde o período colonial atraíam a fé não apenas das populações brancas, mas também, com o passar do tempo, de negros e indígenas. Foram estes últimos que, ao longo dos séculos, imprimiram às festas um toque singular, incorporando modos próprios de celebrar, como também ocorreu na Festa de Nossa Senhora do Amparo.

Com o passar dos anos, porém, as elites locais começaram a se incomodar com a forma como a devoção era conduzida. Tanto que, em 1799, quando Valença foi elevada à categoria de Vila, decidiram instituir o Santíssimo (Sagrado) Coração de Jesus como novo padroeiro da localidade, agora denominada Vila de Nova Valença do Santíssimo Coração de Jesus. Para elas, a mudança fazia sentido: um novo ciclo administrativo exigia também novos costumes, e, sobretudo, devoções mais alinhadas à espiritualidade cristã tradicional.

Pode-se dizer que, a partir de então, instaurou-se uma espécie de divisão social das práticas devocionais: enquanto as elites concentravam suas festividades em torno do Sagrado Coração de Jesus, as camadas populares permaneceram fiéis à Nossa Senhora do Amparo, perpetuando uma devoção marcada pela força do povo e por sua capacidade de ressignificar o sagrado.

A partir da segunda metade do século XIX, a devoção a Nossa Senhora do Amparo ganhou novos propulsores. A santa passou a ser reconhecida como protetora dos operários das fábricas têxteis de Valença, que mais tarde formariam a Companhia Valença Industrial (CVI). Nossa Senhora tornou-se o “amparo” daqueles trabalhadores e trabalhadoras que enfrentavam as adversidades e os sofrimentos do mundo fabril. A cada adversidade vencida, um milagre atribuído à intercessão da santa.

Com o tempo, a devoção cresceu ainda mais. Diante dos milagres que lhe eram atribuídos, Nossa Senhora do Amparo passou a ser considerada milagrosa, e os próprios operários começaram a financiar a festa. Assim, sua fama se espalhou para além dos limites de Valença. No início do século XX, outro grupo profissional se somou a essa devoção: os magarefes, que adotaram Nossa Senhora do Amparo como sua patrona particular. Do cetro ao fuso ou do cetro ao amolador de facas, a santa foi sendo convertida simbolicamente em “gente como a gente”, uma operária e magarefe como eles.

Essa leitura simbólica ajuda a compreender o quanto Nossa Senhora do Amparo foi estimada por diferentes classes trabalhadoras. Em meados do século XX, foram justamente essas camadas populares que transformaram a Festa de Nossa Senhora do Amparo na maior festividade da região. Barracas, bandeirolas, gambiarras, parques de diversões, apresentações culturais e a presença de devotos vindos de outras localidades já compunham a atmosfera da Festa do Amparo. A festa consolidava-se, assim, como uma verdadeira potência econômica para Valença.

Desde por volta de 1950, o próprio poder público municipal passou a reconhecer oficialmente Nossa Senhora do Amparo como padroeira da cidade, algo que, para as classes populares, sempre foi um fato incontestável. Na prática, o título apenas formalizou o que o povo já sabia: Nossa Senhora do Amparo nunca deixou de ser a padroeira de Valença.

Naquele momento, o poder público já percebia a Festa do Amparo como uma força econômica significativa, capaz de atrair visitantes e movimentar a cidade. A partir da década de 1970, inspirada nos moldes da Lavagem do Bonfim, a administração municipal incorporou à festa a tradicional Lavagem do Amparo, com o intuito de ampliá-la e projetá-la ainda mais.

Paralelamente ao crescimento da Festa de Nossa Senhora do Amparo, observou-se o declínio dos festejos dedicados ao Sagrado Coração de Jesus. Sem projeção popular, suas festividades tornaram-se cada vez mais restritas às elites locais e às esferas do poder econômico. Se em 1799 o Sagrado Coração estampava o primeiro brasão da Vila de Nova Valença, em 1976, quando o município instituiu seus símbolos, a cor azul da bandeira passou a representar o manto de Nossa Senhora do Amparo, consolidando-a como padroeira da cidade. O Sagrado Coração de Jesus, por sua vez, perdeu representatividade, sem que lhe fosse atribuída qualquer referência simbólica como padroeiro da cidade pelo olhar do poder público municipal.

Tudo isso que apresentei até aqui evidencia que foram as classes populares as verdadeiras construtoras do sucesso da Festa do Amparo. Trata-se de uma festa popular em sua essência, cercada de múltiplas expressões religiosas e culturais que se ressignificam e atravessam gerações. E assim continua sendo até hoje.

É difícil explicar como a Festa do Amparo mexe com a vida dos valencianos. Basta chegar outubro para que já se ouve alguém dizer: “já estou sentindo o clima da Festa do Amparo”. Essa frase resume a expectativa coletiva pela chegada do grande momento. Cortar confetes, fazer bandeirolas, pintar a casa, preparar o lar para receber familiares e amigos, tudo isso são gestos que anunciam, com antecedência, a proximidade da festa.

Quando ela finalmente chega, todos os olhares e caminhos se voltam para a colina sagrada. A igreja iluminada, os parques funcionando, o colorido das barracas: é a festa acontecendo em sua plenitude. É tempo de reencontrar conhecidos no adro da igreja, acompanhar as novenas, ir ao parque, parar nas barracas, comprar roupa nova nos camelôs, participar das levadas, subir a colina descalço para a missa das sete da manhã no dia 8 e seguir a procissão. Tudo isso, e muito mais, é experiência viva da Festa do Amparo.

Mas não posso encerrar este texto sem falar do que representa o dia 8 de novembro em Valença. É difícil explicar a intensidade com que a cidade vive essa data. Às cinco da manhã, a alvorada festiva anuncia o início do grande dia. Às seis, o Ofício de Nossa Senhora ecoa. Pelos quatro cantos da cidade, o som do palco principal entoa: “Sede meu favor, Virgem soberana, livrai-me do inimigo com vosso valor.” Às sete horas, com o adro tomado de fiéis, Valença inteira proclama: “é dia de louvar Nossa Senhora do Amparo!”. A coroação encerra essa missa tão especial entre lágrimas e agradecimentos por mais um 8 de novembro vivido.

Às dez horas, realiza-se a missa solene. Muitos permanecem, outros chegam, e há quem volte para casa para se preparar para a procissão das quinze horas. As ruas se enfeitam, as sacadas e fachadas são ornamentadas. Quando Nossa Senhora do Amparo desce as ladeiras de Valença nos ombros de seus devotos, as ruas se transformam em palco da emoção máxima da festa. É nesse momento que se compreende o verso do hino: “Oh! Senhora do Amparo, tua festa é emoção.” E que emoção!

Arrisco dizer que a procissão do dia 8 de novembro é o verdadeiro Círio do Baixo Sul da Bahia. Centenas de pessoas tomam as ruas numa proporção indescritível. Confetes, balões, salvas de fogos, bolhas de sabão, aplausos, lágrimas, silêncio, contemplação, bandeirolas, flores, alfazemas, incensos e presentes: são as múltiplas formas com que o povo de Valença saúda Nossa Senhora do Amparo. São quase cinco horas de procissão, ao fim das quais os devotos agradecem por viver mais uma Festa do Amparo e renovam as esperanças de, no próximo ano, poder viver tudo novamente.

E assim vivemos, ano após ano, a Festa de Nossa Senhora do Amparo, uma festa popular construída pelo povo de Valença, que é quem lhe dá o verdadeiro sentido e a emoção que a sustenta. A cada ano, renova-se a mesma certeza: a Festa de Nossa Senhora do Amparo não se explica, se vive! E, a cada festa que passa, ficam as memórias.

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