CARTA DE DIREITO DE RESPOSTA Ricardo Lemos 17 de dezembro de 2025 Notícias À redação do site REDAÇÃO BAHIA Em atenção ao artigo recentemente publicado por representante do setor de frigoríficos que realizam o abate de jumentos no Brasil, consideramos indispensável apresentar esclarecimentos baseados em dados técnicos, científicos e jurídicos, a fim de assegurar ao público uma compreensão equilibrada, responsável e fiel ao comprometimento de o veículo ouvir o outro lado. Dados oficiais da FAO (Food and Agriculture Organization – ONU), do IBGE e do sistema Agrostat indicam que a população de jumentos no Brasil sofreu um declínio de aproximadamente 94% entre 1996 e 2024. Apenas entre 2018 e 2024, mais de 248 mil jumentos foram abatidos na Bahia, estado onde operam três frigoríficos com autorização federal. Esses números demonstram que não se trata de uma atividade de impacto ambiental irrelevante, como por vezes se tenta sustentar, mas de um processo de exploração predatória que ameaça diretamente a sobrevivência da espécie. Não é por outro motivo que o Ministério Público da Bahia em Amargosa recomendou o não prosseguimento da atividade. Sob o ponto de vista econômico, os próprios dados oficiais enfraquecem o argumento de relevância produtiva. O abate de jumentos representa menos de 0,000003% das exportações brasileiras e não gerou crescimento econômico significativo nem aumento relevante de arrecadação de impostos nos municípios onde os frigoríficos estão instalados, conforme estudo do pesquisador Roberto Arruda Souza Lima, da Esalq/USP. Além disso, a pesquisa de Arruda atesta que a atividade depende exclusivamente da captura de animais soltos e não de criação controlada, o que caracteriza um modelo extrativista insustentável. Diferentemente de cadeias produtivas estruturadas, como a da bovinocultura, que envolve elos bem definidos desde a produção agropecuária até o consumidor final, no caso da venda dos subprodutos dos jumentos ao exterior, não existe o elo produtivo da criação animal. A comercialização da pele dessa espécie para China e outros países asiáticos é economicamente inviável em razão de fatores biológicos, como a baixa taxa de conversão alimentar, o longo ciclo reprodutivo e o lento ritmo de reposição populacional. Essa ausência de criação formal, somada à inexistência de direitos de propriedade bem definidos e a outras falhas de mercado, conduz ao fenômeno conhecido como tragédia dos comuns, que explica a exploração excessiva e o colapso de recursos naturais de uso coletivo. O resultado é um modelo incapaz de se sustentar econômica, ambiental ou socialmente. A esse cenário somam-se graves fragilidades regulatórias, como a inexistência de rastreabilidade adequada, controles sanitários insuficientes e a ausência de comprovação do cumprimento integral das exigências legais relacionadas à segurança sanitária, ao bem-estar animal e à sustentabilidade ambiental. Ignorar esse conjunto robusto de evidências contraria o princípio da precaução, um dos pilares do Direito Ambiental brasileiro, e viola o dever constitucional (CF/88, art. 225) do Estado de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e impedir práticas que submetam animais a crueldade, coloquem espécies em risco de extinção e comprometam o equilíbrio ecológico. Em junho deste ano, doze pesquisadores PhDs de diversas áreas de atuação no Brasil (incluindo um doutor da Universidade de Cambridge) declararam estado de emergência pela iminente e irreversível extinção do jumento nordestino. O alerta considera a redução drástica da população, a proximidade do ponto de não retorno na perda do ecótipo nordestino, reconhecido internacionalmente como recurso genético único, e o papel ecológico desses animais em ecossistemas nativos, onde atuam como parte da megafauna responsável por religar teias alimentares perdidas ao longo de eras geológicas. Também são amplamente documentados os riscos sanitários associados à atividade, conforme apontado em nota técnica da Agência de Defesa Agropecuária do Estado da Bahia e em publicações científicas, incluindo o registro recente de caso da doença mormo em humanos no Rio Grande do Norte. Além disso, há registros nos autos de procedimentos do Ministério Público da Bahia sobre a ocorrência de trabalho infantil e condições análogas à escravidão envolvendo a cadeia do abate de jumentos no estado. Esse conjunto de irregularidades impõe ainda um risco reputacional ao agronegócio brasileiro, reconhecido internacionalmente pela excelência de seus sistemas de produção, fiscalização e exportação de produtos de origem animal, reputação que contrasta com a natureza rudimentar, extrativista e precariamente regulada do abate de jumentos. Cumpre lembrar que o jumento nordestino é também um patrimônio histórico e cultural imaterial incontestável, amplamente retratado na história social, econômica e cultural do Brasil. Portanto, o abate dos jumentos afronta também o artigo 215 da Constituição Federal de 1988. Diante desse cenário, os cientistas declararam estado de emergência em relação à iminente e irreversível extinção do jumento nordestino no Brasil e recomendaram a suspensão imediata do abate, até que existam dados oficiais atualizados sobre o efetivo populacional, a taxa de reposição da espécie e a eventual possibilidade, hoje inexistente, de uma cadeia produtiva que atenda aos critérios legais, sanitários e de bem-estar animal. É fundamental destacar que existem alternativas tecnológicas viáveis à exploração predatória. No Brasil, o Laboratório de Zootecnia Celular da Universidade Federal do Paraná desenvolve um protocolo para a produção de colágeno de jumento por fermentação de precisão, tecnologia já consolidada na indústria farmacêutica. Essa solução permitiria atender à demanda internacional sem sacrificar a espécie, ao mesmo tempo em que promoveria inovação, geração de empregos qualificados e desenvolvimento sustentável. O Brasil caminha na contramão de decisões internacionais. Em fevereiro de 2024, os 55 países da União Africana determinaram a suspensão imediata do abate de jumentos, reconhecendo seus impactos negativos sobre a biodiversidade, as economias locais e a segurança alimentar. Diante de todos esses elementos, é essencial que o debate público não seja reduzido a interesses econômicos pontuais, mas considere os limites legais, éticos e constitucionais que regem a proteção ambiental no país. O abate de uma espécie vulnerável, em acelerado declínio populacional, sem benefícios sociais comprovados e sob graves lacunas regulatórias, representa um risco concreto de danos irreversíveis. A discussão sobre o abate de jumentos é, portanto, uma questão de responsabilidade institucional, segurança jurídica e defesa do patrimônio ambiental e cultural brasileiro. O presente direito de resposta busca contribuir para um debate público qualificado, baseado em evidências científicas, dados oficiais e no interesse coletivo. Atenciosamente, Yuri Fernandes Lima Doutorando em Direito pela UFPR Consultor Jurídico da The Donkey Sanctuary no Brasil Deixe uma resposta Cancelar resposta Seu endereço de email não será publicado.ComentarNome* Email* Website